Comer gato por lebre

Comer gato por lebre

O cenário é um estúdio de televisão luxuoso, decorado como se fosse o camarim de Luís XIV depois de descobrir o IKEA.

Entra em cena o Bobo da Corte. Veste um fato Dior, discretamente berrante, sapatos Hermès que denunciam cada passo com um som de vaidade crua e uma gravata vermelha que parece saída de um leilão de antiguidades soviéticas. A seu lado, um pequeno écran começa a emitir um holograma de Estaline.

— Bem-vindos ao “Comer gato por lebre”, o programa que promete humor, história e zero desconforto com os nossos camaradas mais… icónicos. Hoje temos connosco um convidado que redefiniu o conceito de “perder a cabeça” — e de a fazer perder a dos outros. O grande Estaline!

A imagem de Estaline surge pixelada. Está com um ligeiro tremor, que o Bobo atribui à emoção e não à idade do ficheiro soviético.

Bobo:

— Josef Vissariónovitch Stalin! Que prazer. Sabia que tenho todos os seus discursos em versão áudio de luxo, narrados pelo Pedro Abrunhosa?

(Nada. Silêncio. Até que do fundo do estúdio se ergue uma voz. Joane entra a cambalear, com o olhar em brasa e um sorriso de quem já sabe o fim da história.)

Joane:

— Ah, meu caro Bobo! Já começaste a entrevistar múmias egípcias esta semana ou ainda estás só com as soviéticas?

Bobo:

— Isto é um programa de humor oficial. Sério! Que exige um trabalho difícil — protesta.

Joane:

— Difícil? O difícil era legendar fotografias na União Soviética. Uma vez Kruschev visitou uma quinta de porcos e foi lá fotografado. No jornal, surgiu a dúvida em relação à legenda da fotografia. “O camarada Kruschev entre porcos”, “O camarada Kruschev e porcos” e “Os Porcos cercam o camarada Kruschev”. Todas as sugestões são rejeitadas por serem consideradas ofensivas. Finalmente, o editor anuncia sua sensata decisão: “Terceiro da esquerda – camarada Kruschev.”

(O Bobo está desconcertado com a loucura vicentina de Joane. As piadas russas, a despropósito, estão a deixá-lo irritado)

Bobo:

— Não percebo onde queres chegar. O que é que eu tenho a ver com os soviéticos?

Joane:

— Calma! Estou só a “gozar com quem não trabalha”. Já agora, sabes por que razão, na União Soviética, os relógios paravam às três da tarde? Porque era a hora em que os cidadãos paravam de trabalhar para se rir das estatísticas do partido. Perdão, das audiências do teu programa.

(O público solta um riso abafado. O Bobo revira os olhos.)

Bobo:

– Olha lá, ou tolo! Pensei que te tinham enterrado no tempo de Gil Vicente. Essas piadas estão”Demodê”. A União Soviética já acabou. O traidor do Mikhail Gorbatchov acabou com ela.

Joane:

– Antes de me convenceres disso a mim, convence antes o Putin – retorquiu o Joane, não sem antes lançar mais umas piadas soviéticas a despropósito, como é próprio dos loucos.

— Um homem vai ao talho e pergunta: “Têm carne?”

E o talhante responde: “Isto é a farmácia! A loja onde não há carne é ao lado!”

(Gargalhadas gravadas)

— Um cidadão vai ao KGB e diz: “O meu papagaio fugiu. É só para avisar que as opiniões dele não são as minhas!”

(Explosão de riso gravado)

Bobo:

— Não tem piada! — grita o Bobo. Já estou indisposto.

Joane:

(Aproximando-se com um passo desengonçado, mas cheio de propósito)

A sério? Só se for do fígado, que é o único órgão que resiste à tua digestão moral. Estás a entrevistar hologramas de carniceiros, enquanto escondes as prateleiras onde guardas o champagne!

Bobo:

(Empalidece, olha em volta)

Não sejas demagogo, Joane. Eu vesti esta camisa Chanel para homenagear o proletariado elegante.

Joane:

(Com um ar malandreco)

Claro. Nada condiz tanto com um “Viva a Revolução!” como um blazer Gucci e um corte de cabelo que custa mais do que o ordenado mínimo. Diz-me, quando entrevistares o Pol Pot, vais usar lantejoulas em homenagem aos campos de arroz?

(O público do estúdio, pago com vales de refeição, começa a rir.)

Bobo:

Parvalhão!

Joane:

(Levanta o dedo indicador para inquirir)

— Já agora, és benfiquista ferrenho, não és?

Bobo:

— Claro! Desde pequenino. Vamos ganhar este campeonato aos lagartos. Sem ofensa, são os meus melhores espetadores porque são sempre pacientes, uma virtude que treinaram muito nos últimos 40 anos de penúria. É que cada vez têm de esperar mais tempo por uma boa piada no meu programa.

Joane

(Sem se deixar impressionar com a primeira autocrítica do Bobo)

— Pois, explica lá então como é que uma águia, símbolo de liberdade, acabou a dar voltinhas obrigatórias no Estádio da Luz, antes de cada jogo? Aquilo é zoologia com contrato coletivo!

(Mais gargalhadas gravadas)

Bobo:

– Não tem piada, Joane. Tu nem sequer sabes que é uma bola. No teu tempo, quase na Idade Média, não sabias sequer que o mundo era esférico. És um tonto, Joane!

Joane:

– Olha, Bobo, fiquei agora a saber por que razão a tua geração dá tantos pontapés a este mundo. Mas responde-me a esta questão importante. Sabes qual é a diferença entre o Politburo do tempo do Leonid Brejnev e o balneário do Benfica? O Brejnev não sabia dançar o tango, mas beijava melhor.

Bobo:

– És mesmo parvo, Joane, explodiu, a latejar vermelho de cólera, o Bobo do Regime.

O cenário altera-se. As luzes tornam-se mais baças. Alguém desliga o ecrã com o holograma de Estaline. No lugar do fundo rosa, surge agora um pano preto com a palavra “Incoerência”. O público está atento. O Bobo permanece sentado, despojado da sua couraça de sarcasmo de boutique.

(Joane entra com um livro de capa vermelha.)

Joane:

— Aqui está. O teu evangelho. “O Capital”. Olha que ironia: foi escrito por um homem que morreu pobre e agora serve para justificar os teus copos de cristal.

Bobo:

— Joane, que queres de mim? Confissão? Arrependimento?

Joane:

— Só a verdade. Mas se vier com uma dose de vergonha, aceito com gosto.

Bobo:

— Sabes como é este meio…. Há contratos. Há patrocinadores.

Joane:

— Ah, os patrocinadores! Os novos censores. Tu eras perigoso quando tinhas dívidas. Agora és só incómodo para quem não gosta de perfumes caros.

Bobo:

— Fui ingénuo. Mas também fui sonhador.

Joane:

— E agora és decorador de narrativas. Sonhas com a nova coleção outono-inverno da hipocrisia.

Bobo:

— Achas que é fácil fazer piadas com política?

Joane:

— Rir? Então ri desta:

Em 1942, um homem grita na Praça Vermelha: “Morte ao tirano de bigodinho!”. Os agentes secretos do KGB prendem o homem e o levam-no diretamente a Estaline. Estaline pergunta:

– A quem chamou tirano de bigodinho?

– A Hitler, é claro!

– E vocês, camaradas – pergunta Estaline aos agentes – a quem pensaram que fosse?

Bobo:

— Não me tortures mais com piadas soviéticas sem graça e fora de contexto. Eu só queria mudar o mundo com humor…

Joane:

— E mudaste. Conseguiste que a hipocrisia se sentasse ao teu lado no sofá, vestida de Armani, a rir-se dos pobres enquanto cita Marx em francês.

Bobo:

— Talvez seja hora de mudar de guião.

Joane:

(Toca-lhe no ombro)

— Ou então de finalmente escreveres o teu.

“A cortina desce devagar. Joane sai de cena a rir-se sozinho, como quem sabe que os loucos é que ficam com a última palavra. O Bobo permanece sentado. Só. Imóvel. A luz foca-lhe a cara. Pela primeira vez, está calado — não por medo, mas porque se viu ao espelho.

FIM.

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